terça-feira, 15 de maio de 2018

A Ghost Story - Sombras da Vida

Uma experiência de arrepiar!

Confesso que gostaria de escrever melhor para entregar um texto à altura desta pérola chamada Sombras da Vida (A Ghost Story, no original). Denso, melancólico e reflexivo, o longa dirigido por David Lowery é um daqueles títulos impossíveis de se traduzir em palavras. Um filme raro capaz de transitar por temas tão complexos com a leveza de um fantasma preso às suas memórias. Numa proposta imersiva e delicadamente imagética, o talentoso realizador norte-americano provoca uma mistura de emoções ao tecer um poético comentário sobre o luto, a efemeridade do tempo e a complexa experiência que é estar vivo. Sem medo de soar pretensioso, Lowery encanta ao investir numa silenciosa atmosfera contemplativa. Ele encontra na força das suas imagens e na poderosa performance de Casey Affleck a inquietação necessária para questionar a nossa imaturidade quanto ao fim, quanto a nossa finitude e quanto a difícil missão de dar adeus.

Longe de ser um texto fácil, o roteiro assinado pelo próprio David Lowery se distancia do viés comercial ao narrar a trágica história de um casal separado pela morte. Embora a caracterização do fantasma sugira um viés lúdico, o realizador provoca ao tratar o tema dentro de um sóbrio contexto metafísico. Influenciado por elementos do espiritismo, ele se distancia dos clichês dualísiticos ao tratar o espectro como um “ser” melancólico, uma criatura desencarnada presa a algo importante do seu passado, a um objeto, a uma pessoa ou a um sentimento. Esqueça, portanto, a roupagem romantizada mostrada, por exemplo, no clássico Ghost: Do Outro Lado da Vida. O fantasma, aqui, não tem voz, não tem liberdade, não tem esperança. Numa sacada de gênio, Lowery testa as expectativas do público ao nos colocar na ingrata posição do saudoso marido. Tal qual ele, nós estamos presos, enclausurado na tão querida casa do protagonista. O tempo é irrelevante. O que acontece fora dali é irrelevante. Ao estreitar o elo entre o espectador e o espectro, o longa permite que sintamos a sua dor, a sua tristeza, a sua raiva, a sua frustração, a sua inércia. O desconforto é nítido, é universal, principalmente dentro do propositalmente extenuante primeiro ato.


Impulsionado pela descontinua montagem, David Lowery mostra completo domínio narrativo ao traduzir a angustiante situação do fantasma. Num primeiro momento, o diretor surpreende ao investir em planos vazios e extremamente longos, capturando não só estreita conexão sentimental entre o casal, como também o peso do luto sob um prisma íntimo e comovente. A incômoda sequência da torta, em especial, sintetiza com rara inspiração a dor de uma perda. Um momento valorizado pela introspectiva performance de Rooney Mara.  Numa proposital mudança de rumo, entretanto, o diretor, na transição do primeiro para o segundo ato, investe pesado no ritmo ao revelar a sensação de tempo decorrido. Ele coloca o seu protagonista (e consequentemente o público) em segundo plano ao mostrar - numa solução genial - a vida seguindo. A assombração, aqui, é uma peça esquecida em um cenário que já não era mais seu. É interessante ver como, à medida que a trama avança, o fantasma amoroso passa a ganhar mais força, mais presença dentro deste espaço. Ele ainda carrega consigo sentimentos. Lowery é astuto ao explorar as manifestações do espectro para estudar a natureza trágica da sua situação. Afeto e raiva se confundem. Mesmo coberto por um lençol com dois furos na altura dos olhos durante 80% da película, o fantasma vivido por Casey Affleck esbanja expressividade e presença física. O ator torna o minimalismo cênico ruidoso. Seus gestos são sempre muito impactantes. Seu "olhar" sempre muito penetrante. 


Impecável ao estabelecer\explorar o singular elemento fantasmagórico, David Lowery coloca os dois pés no existencialismo ao discutir a nossa complexa relação com a vida, o tempo e as memórias. Sob um sublime prisma contemplativo, o realizador, inicialmente, se concentra nas nossas experiências neste plano, criando uma relação de apego que sustenta a presença do espírito mesmo após a sua morte. Se reparamos bem, ele opta por rodar o seu filme num aspecto mais quadrangular, com um ligeiro acabamento nas bordas. Um formato que, para mim, remete àquelas antigas fotografias instantâneas das câmeras Polaroid. Em sua camada mais superficial, A Ghost Story se revela uma obra sobre o valor das memórias, sobre o quão tênue (e perigosa) pode ser a linha entre o saudosismo e o apego físico. Dentro da lógica espectral sugerida pelo texto, as lembranças são frágeis e o vazio é crescente. Na transição para o fantástico clímax, inclusive, o argumento é perspicaz ao voltar para a origem, ao justificar o inabalável elo entre o fantasma e a casa, propondo uma sábia crítica ao questionar a nossa recorrente capacidade de privilegiar os vínculos materiais em detrimento dos sentimentais. Vide o delicado diálogo entre fantasmas, uma sequência singela com muito a dizer sobre o destino do personagem. É daqui, aliás, que o roteiro passa ao segundo grande tema da película: a nossa finitude. Sem a intenção de parecer pretensioso, Lowery é cuidadoso ao refletir sobre a vulnerabilidade humanidade diante das peças da vida. O fantasma, aqui, surge como um símbolo de egoísmo, um ser que, por querer tanto permanecer, relutou em aceitar o fim como parte da nossa existência\experiência na Terra. Ao não enxergar a sua “mortalidade”, ele ficou refém dos seus anseios, preso na sua própria consciência. Uma interpretação inteligente que faz total sentido quando comparada com o arco da viúva (Rooney Mara, excelente) e na maneira resiliente com que ela encara o peso do luto.


Diante das suas inúmeras e interpretativas camadas, entretanto, A Ghost Story, a meu humilde ver, alcança o seu ápice no momento em que decide praticamente meditar sobre a efemeridade do tempo. Fazendo do silêncio o seu principal aliado, David Lowery nos brinda com uma jornada transcendental acerca do ato de estar vivo. A partir deste contemplativo ponto fixo, um protagonista solitário preso a um lar vazio, o realizador brinca com as noções espaço-temporais ao traduzir as transformações em torno do fantasma, ao mostrar o desprezo do tempo para com a matéria. O que era novo se torna velho num simples movimento de câmera. O habitável se torna vazio. O pequeno se torna gigante. Ao diluir as linhas entre o passado, o presente e o futuro, Lowery é incisivo ao mostrar o quão minúsculos nós somos e também ao questionar a nossa falsa sensação de controle sobre a realidade que nos cerca. Impulsionado pela fotografia fria e luminosa de Andrew Droz Palermo, o cineasta é astuto ao traduzir a fragilidade do seu lúdico fantasma perante a inevitável transição temporal. Num primeiro momento, por exemplo, o espectro surge como um poderoso elemento cênico, uma presença constante valorizada nos estáticos e imersivos planos médios. Dentro da casa ele domina a tela. Por diversas vezes, inclusive, o diretor é criativo ao usar a moldura de portas e janela como uma espécie de barreira de contenção, reforçando a crescente sensação de clausura e solidão do personagem. À medida que o vazio passa a tomar conta do cenário, porém, Lowery opta por se distanciar gradativamente do protagonista, investindo em expansivos planos abertos para traduzir o desamparo daquele ser perante a consequência das suas próprias escolhas. Dotado de uma refinada assinatura própria, Lowery encanta ao investir em quadros dignos de moldura, numa mistura de luzes e cores que, no embalo da evocativa (e eclética) trilha sonora de Daniel Hart, só ajuda a reforçar o potencial cult da sua obra.


Embora faça questão de evidenciar a nossa fragilidade diante da voracidade do tempo, A Ghost Story está longe de ser um filme misantrópico. Muito pelo contrário. Ao narrar a melancólica jornada de um fantasma preso às suas memórias, David Lowery enche a tela de sentimento ao valorizar as pequenas experiências da vida, o sentido das singelas mensagens e os mais sinceros laços humanos. O fim, aqui, é parte fundamental da experiência, a força motora que nos faz avançar, mirar o futuro sem esquecer do passado. Uma manifestação profunda e reflexiva proposta com a originalidade de uma voz que merece ser ouvida. Uma experiência cinematográfica singular e independente.

2 comentários:

Unknown disse...

Uau que a analise perfeita. Amei. Não assisti esse filmf, mas agora ta na lista. Parabéns 👏👏👏.

thicarvalho disse...

Valeu pela visita e pelo comentário. A Ghost Story é um daqueles filmes que nos fazem refletir sobre tantas coisas. Grande filme.