terça-feira, 27 de março de 2018

Roxanne Roxanne

O Cinema e as suas realidades

O que Moonlight: Sob a Luz do Luar e Roxanne Roxanne têm em comum? Não, eu não estou falando sobre a presença do talentoso ator Mahershala Ali. Na verdade, os dois filmes, além de retratarem a desigual rotina de dois jovens negros “engolidos” pela realidade que os cercavam, foram lançados no versátil Festival de Sundance, uma respeitada janela para os realizadores mais autorais. E qual a grande diferença entre os dois? Enquanto o primeiro, impulsionado pelo ‘hype’ conseguido no evento, entrou no radar das grandes premiações, ganhou fôlego no circuito comercial e chegou ao topo ao levar o Oscar de Melhor Filme, o segundo, mesmo bem recebido pela crítica, caiu num “limbo” imposto por um mercado cada vez mais ávido por blockbusters e só não foi “esquecido” graças a perspicácia da Netflix em enxergar o potencial geralmente despercebido destas produções. Inspirado na vida de Roxanne Shanté, uma promissora rapper que, em apenas 25 anos, experimentou a dura realidade feminina num contexto machista, o longa dirigido e roteirizado por Michael Larnell encontra um bem-vindo meio termo ao tratar com a mesma relevância tanto a meteórica jornada da impetuosa cantora, quanto as desventuras de uma jovem mulher presa num círculo vicioso, um retrato íntimo e atual que definitivamente não merecia cair no esquecimento. Embora esteja uns degraus abaixo do seu “irmão” de Sundance, principalmente quando o assunto é o desnivelado roteiro, Roxanne Roxanne contorna as suas falhas ao dar voz a esta interessante personagem, encontrando nela o ‘background’ necessário para expor os dilemas de uma mulher independente sob um prisma universal e humano. 


Enquanto se concentra no arco da cine biografada, Roxanne Roxanne envolve ao propor um interessante estudo de personagem. Impulsionado pela surpreendente performance de Chanté Adams, que, do alto dos seus 23 anos, convence seja como uma impulsiva adolescente de 14 anos, seja como uma desamparada mulher de 25 anos, Michael Larnell é particularmente cuidadoso ao construir a sua complexa protagonista. Embora se preocupe em estabelecer a ascensão fulminante da rapper e a sua péssima relação com o sucesso, o realizador é sútil ao traduzir o amadurecimento da jovem, ao separar a rapper da mulher. Num competente trabalho de transição temporal, o argumento, num primeiro momento, é habilidoso ao se concentrar no elo entre Shanté e a sua mãe, a esperançosa Peggy (Nia Long, mostrando recursos dramáticos até então pouco explorados na sua filmografia). Por mais que, em alguns momentos, o roteiro pese a mão quando o assunto é a unidimensionalidade dos tipos masculinos, Larnell o faz com a melhor das intenções, justamente para enfatizar o início do círculo vicioso que viria a cercar a jornada de uma precoce criança. Previsibilidades à parte, o realizador investe numa abordagem intimista ao mostrar uma jovem tendo que lidar com conflitos maiores, encontrando no rap e no “mercado paralelo” a solução para parte dos seus problemas. Neste meio tempo, porém, é bom ver a sobriedade do argumento em capturar a influência da sua instável figura materna, um tipo ora zeloso, ora amargurado que permeia a trama mesmo quando não está em tela. Isso porque, independente do rumo que a vida da protagonista tome, é possível perceber a sua participação na construção da personalidade da cantora. Na manutenção de traços que, mesmo após o frisson em torno da sua carreira, continuaram evidentes, entre eles a responsabilidade, a impulsividade, a afetuosidade e o lampejo de inocência de uma pessoa que, apesar das dificuldades, teve uma infância alegre e uma boa educação. Assim como em Moonlight, seguimos os passos de um personagem que cresce, sofre, cria uma casca, mas, ainda assim, traz no seu olhar a essência daquela garota que começa o filme dominando as batalhas de rap da sua região. Uma bela composição de personagem. 


Sucinto ao desvendar a realidade da obstinada Shanté, Roxanne Roxanne é igualmente denso ao mostrar uma jovem mulher repetindo os erros da sua progenitora. Diante do seu despreparo para lidar com o precoce sucesso, o roteiro é perspicaz ao capturar a face mais frágil do mundo do showbiz, ao revelar a diluição de estreitos vínculos, as rixas por ego, a crescente solidão e o seu ingênuo modo de fazer negócio. Embora subaproveite alguns promissores arcos, a sincera relação entre Roxanne e o segurança Antwan (Germar Terrell Gardner), por exemplo, é desastradamente esquecida, Michael Larnell é astuto ao fazer uso do poder de sugestão, se distanciando das explicações óbvias ao questionar a honestidade e as verdadeiras intenções daqueles que a cercavam. Um assunto que ganha uma abordagem ainda mais íntima no que diz respeito ao seu romance com o dúbio Cross (Mahershala Ali). Mesmo limitado pelo texto, que pesa a mão em alguns momentos de maneira descuidada, o diretor sintetiza a realidade de muitas mulheres ao mostrar a influência sedutora deste homem sobre Roxanne, preparando o terreno para um drama familiar infelizmente reconhecível aos olhos de muitas mulheres. Na verdade, por mais que a trama seja ambientada nos anos 1980, Larnel realça a universalidade do tema ao expor as sequelas de um relacionamento abusivo, um retrato desconfortável potencializado pelos seus imersivos planos fechados e pela sensação de caos conseguida pelo uso da câmera da mão. Dinâmico, o longa é perspicaz ao revelar o círculo vicioso acontecendo, ao expor os contrastes, a violência e o machismo enfrentado pela mulher por trás da cantora. Tal mãe, tal filha. A sequência de virada na trama, em especial, é inteligentíssima, uma correlação afiada que surge como um alerta para a juventude atual. Em franca ascensão dentro de Hollywood, Mahershala Ali contorna a unidimensionalidade do seu Cross ao criar uma figura realmente magnética, um homem de passado nebuloso que, por trás da sua casca gangsta, esconde um olhar ora humano, ora odioso. Uma interpretação bem mais complexa que o roteiro parecia exigir. Num todo, aliás, o argumento peca pelos problemas de acabamento, se contentando com pouco ao, por diversas vezes, esnobar os dilemas dos personagens secundários, vide a ótima melhor amiga vivida por Shenell Edmonds e a sua rival interpretada por Cheryse Dyllan. Duas figuras que, em poucas cenas, fizeram o bastante para merecer um maior tempo de tela. 


Embalado por enérgicos números musicais, encarados com gana por Chanté Adams, Roxanne Roxanne transforma a jornada de Roxanne Shanté num grito de alerta feminino e realístico. Mais do que simplesmente reproduzir os fatos, Michael Larnell é ágil transitar por temas naturalmente espinhosos, capturando a essência da cantora que dá título ao longa ao expor a sua verdade sob um prisma urbano e feroz, tal qual as suas afiadas rimas.

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