quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Do Fundo do Baú (O Planeta dos Macacos)

Preconceito, repressão, intolerância religiosa, segregação... Há cinquenta anos uma inusitada produção já ousava discorrer sobre temas tão (infelizmente) atuais com originalidade e contundência. Inspirado no romance escrito por Pierre Boulle, o clássico O Planeta dos Macacos (1968) completa cinco décadas se mantendo como um marco dentro da ficção científica. Lançado num momento de ebulição social nos EUA, incluindo a Guerra do Vietnã, o auge da luta pela igualdade racial e pelos direitos civis da população negra, o longa dirigido por Franklin J. Schaffner causou um inegável choque ao usar o cinema de gênero para refletir sobre alguns dos mais enraizados conflitos presentes na sociedade americana. Ao tratar o homem branco como um ser involuído, dominado por um inteligente grupo de primatas, a película estrelada por Charlton Heston colocou o dedo na ferida ao questionar a ignorância humana, usando a tão temida ameaça atômica num contexto sociopolítico que insiste em não se renovar. 

Com roteiro assinado por Rod Serling, o criador da icônica série The Twilight Zone, e remodelado por Michael Wilson, O Planeta dos Macacos se revelou um daqueles projetos ousados que demorou para sair do papel. Durante a fase de pré-produção, o argumento foi revisado (e modificado) por diversas vezes, transitando do Sci-Fi para a sátira social ao absorver alguns dos temas mais recorrentes na época de lançamento. “O primeiro roteiro foi escrito por Rod Serling. E, como se viu, era uma história direta de ficção científica sobre uma cultura primata em outro planeta em outro sistema solar. Eu alterei tudo isso para torná-lo uma sátira. Uma sátira, de verdade, sobre a raça humana... As espécies dominantes que evoluíram eram os macacos que haviam descendido e imitado a cultura do homem que a precedera. O que explica a sátira da história. Não era uma ficção científica direta. Era mais sobre a situação humana do que sobre os macacos. Penso que este é o ponto-chave.”, disse Wilson à Marvel's Planet of the Apes', USA Issue 2, em 1974. Apesar do forte subtexto, o produtor Mort Abrahams revelou que, durante a produção, o viés crítico era tratado com discrição, tudo para impedir que o longa perdesse o aporte da Universal Studios. “Sem nunca dizer isso, estávamos fazendo um filme político. Nós nunca falávamos entre nós porque naquele momento, diante do tempo que estávamos no Vietnã e da nossa imagem política, (Planeta) era o último tipo de filme que o estúdio queria. O país estava tendo problemas muito sérios. (...) Nunca discutimos os aspectos políticos com o estúdio ou os atores, porque isso aumentaria o problema: Frank (Schaffner) e eu tínhamos um pacto: não discutimos isso com os atores, não discutimos isso com o estúdio.”, confidenciou ao documentário Behind of the Planet of Apes (1998). 


Lançado nos EUA dois meses antes da trágica morte do pacífico líder dos movimentos raciais Martin Luther King Jr., Planeta dos Macacos se passa num futuro distante onde, após uma longa viagem espacial, a tripulação da missão liderada pelo astronauta George Taylor (Charlton Heston) pousa forçadamente num isolado planeta. Em busca de abrigo, os sobreviventes decidem desbravar o território, mas logo se deparam com uma desoladora realidade: o local era dominado por primatas desenvolvidos e os poucos humanos regrediram a um estágio neandertal. Na mira dos macacos, Taylor perde a sua voz durante a fuga e, sem ter como explicar a sua situação, acaba capturado pela raça dominante. Tratado com inferioridade pelo líder do grupo, o místico Drº Zaius (Maurice Evans), ele logo cria um vínculo com os inteligentes Zira (Kim Hunter) e Cornelius (Roddy McDowall), dois primatas cientistas que não demoram muito para perceber que não estavam diante de um humano involuído. Com a ajuda dos dois, Taylor resolve desafiar o 'status quo', sem sequer desconfiar dos motivos que levaram a raça humana a tal situação. 


Enquanto crítica social, O Planeta dos Macacos se tornou um daqueles filmes à frente do seu tempo. Consciente do poderoso subtexto, Franklin J. Schaffner decidiu quebrar as expectativas do público ao mostrar a realidade sob um prisma fantástico, original e naturalmente subversivo. Num primeiro momento, o realizador acerta ao tratar Taylor como um herói convencional, um homem incomodado com os rumos da sua raça que, diante de um cenário repressivo e violento, decide lutar pela sua liberdade. Uma premissa genuinamente americana. Não demora muito, porém, para o longa apontar a sua mira para os macacos, para àquela estrutura social preconceituosa, retrógrada e agressiva, refletindo sobre o contexto sociopolítico da época ao criar um poderoso paralelo com a realidade americana nos anos 1960. Ao propor uma inusitada inversão, Schaffner brilha ao refletir não só sobre a involução humana, como também sobre a falta de diálogo e o medo do desconhecido, rompendo com o maniqueísmo típico do cinema pipoca ao não escolher lados. O que fica bem claro dentro do último ato, quando, num dos maiores 'plot twists' da história da Sétima Arte, o roteiro encontra os verdadeiros culpados, mostrando que aquela realidade poderia não estar tão distante assim. Impulsionado pela imponente presença de Charlton Heston, magnífico ao entregar um tipo ora sábio e reticente, ora másculo e reativo, o longa não foge da raia ao encontrar as brechas necessárias para falar também sobre a questão racial. Servindo como inspiração para títulos como o recente Corra!, O Planeta dos Macacos universaliza o assunto ao revelar a face mais vil do preconceito, ao expor a violência, a indignidade e a desigualdade contra as “minorias”, potencializando o alcance temático ao colocar um homem branco como o perseguido. Na posição do dominado, não do dominante. 


E como se não bastasse a relevância temática presente no texto, O Planeta dos Macacos envelheceu muitíssimo bem graças ao incrível trabalho da equipe de direção de arte e maquiagem. Curiosamente, porém, num primeiro momento, o longa quase teve um cenário bem diferente. Mais fiel a obra literária, a ideia era que a cidade dos primatas fosse moderna, uma visão de futuro totalmente distinta do produto final. Na verdade, visando reduzir os custos de produção, o roteirista Michael Wilson, com o aval dos executivos da Universal, decidiu criar um cenário mais primitivo\artesanal, uma visão de mundo bem plausível que deu a Franklin J. Schaffner a opção de construir um cenário extremamente habitável. Investindo pesado nos efeitos práticos, o realizador expandiu o conceito original ao traduzir o 'modus operandi’' dos macacos, ao realçar as particularidades desta sociedade civilizada, permitindo que o público os enxergasse como animais evoluídos. A economia feita com os elementos cenográficos, porém, não foi em vão. Num trabalho à frente do seu tempo, a equipe liderada pelos maquiadores Ben Nye, John Chambers e Daniel Striepeke revolucionou a indústria do gênero ao criar primatas antropomorfizados indiscutivelmente realísticos. Através de expressivas próteses faciais e impressionantes trajes, a equipe de maquiadores exaltou a verossimilhança ao tornar tudo realmente plausível aos olhos do público, um trabalho ímpar que, mesmo hoje na era da captura de movimentos, se revela impactante. Além do esmero ao traduzir as particularidades das variadas espécies de símios, O Planeta dos Macacos fascinou o público ao valorizar a expressividade dos personagens animalescos, ao diluir a linha evolutiva entre humanos e macacos, exaltando a conexão entre as espécies ao criar verdadeiros ícones da cultura pop. Como não citar, por exemplo, o intransigente Dr. Zaius, o assustado Cornelius e a corajosa Zira. Um predicado, verdade seja dita, valorizado pela meticulosa performance do trio Maurice Evan, Roddy McDowall e Kim Hunter, impecáveis ao traduzir a personalidade dos seus respectivos personagens mesmo escondidos sob pesada maquiagem. 


Com um visual assombroso e um audacioso subtexto político, O Planeta dos Macacos se tornou um triunfo de público e crítica, revolucionando o gênero ao preparar o terreno para uma das primeiras grandes franquias de Hollywood. Apesar do elevado de preço de produção, especula-se que o longa tenha custado quase US$ 6 milhões, o contextualizado Sci-Fi distópico rendeu US$ 32 milhões nos EUA, um resultado bem acima das expectativas dos executivos. Mais do que simplesmente reinventar o conceito de 'plot twist', culminando numa das sequências finais mais memoráveis da história do cinema, Franklin Schaffner conseguiu capturar a expansividade da obra original, criando um mundo tão habitável, tão frutífero, que os produtores se viram tentados a dar sequência a jornada deste grupo de evoluídos primatas. Embora nenhuma das sequências tenha alcançado o patamar do primeiro filme, a Fox ajudou a definir um modelo de negócio bem comum na Hollywood atual, extraindo o máximo da criação de Pierre Boulle ao seguir apostando na saga em De Volta ao Planeta dos Macacos (1970), Fuga do Planeta dos Macacos (1971), A Conquista do Planeta dos Macacos (1972) e A Batalha no Planeta dos Macacos (1973). 


Respeitado junto aos fãs da cultura pop, a série seguiu rendendo frutos nos anos seguintes, se mantendo no imaginário dos fãs do gênero em títulos como a releitura nacional Os Trapalhões no Planeta dos Macacos (1976), o questionável remake Planeta dos Macacos (2001) e a magnífica trilogia prequel formada por Planeta dos Macacos: A Origem (2011), Planeta dos Macacos: O Confronto (2014) e Planeta dos Macacos: A Guerra (2017). Só nestes últimos três filmes, porém, a franquia voltou ao seu ápice, retomado o seu lugar de destaque não só servir em prol do desenvolvimento tecnológico do dispositivo cinema, vide o incrível macaco César do talentoso Andy Serkis, como também ao oferecer os ingredientes necessários para a construção de uma nova (e igualmente poderosa) parábola política. E isso sem nunca romper com o viés blockbuster defendido com maestria pelo clássico. Uma obra que ajudou a redefinir o conceito dos filmes sobre um futuro distópico, se distanciando dos argumentos mais fantasiosos ao expor o poder de (auto)destruição da raça humana.

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