quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

My Happy Family

Em busca de independência

Manana era uma mulher frustrada. Seu casamento era tão frio quanto um geleira. Sua rotina doméstica era caótica. Dividindo o seu apertado apartamento com outras seis pessoas, ela precisava conviver diariamente com o desdém dos seus dois filhos, com o distanciamento do seu marido e  os desmandos da sua conservadora mãe. Manana deixa de se tornar uma pessoa "invisível", no entanto, quando decide romper com a sua própria prole, se distanciar da sua cansativa rotina e se mudar sozinha para um novo apartamento. Da Geórgia para o mundo graças ao faro apurado da Netflix, Minha Família Feliz - que titulo irônico - escancara os dilemas femininos numa sociedade patriarcal com intensidade e um pontual senso de humor. Embora se passe num contexto bem particular, uma tradicionalista família georgiana, o longa dirigido por Nana Ekvtimishvili e Simon Groß mostra universalidade ao tratar de tabus bem comuns ao universo feminino, expondo a realidade de uma mulher infeliz sob um prisma introspectivo, maduro e indiscutivelmente crítico. 


Com roteiro assinado pela própria Nana Ekvtimishvili, My Happy Family (no original) é narrativamente comedido ao desvendar os conflitos da sua instigante protagonista. Ao contrário da sua expansiva família, Manana "fala" através do seu olhar, da sua expressão corporal. No embalo da humana performance de Ia Shugliashvili, intensa ao reproduzir a apatia, a angústia e a coragem de uma mulher disposta a romper vínculos tão estreitos, a dupla de realizadores mostra inspiração ao, num primeiro momento, propor um profundo estudo de personagem. Numa abordagem bem naturalista, Nana e Simon são astutos ao traduzir a confusa rotina da protagonista, ao estabelecer a problemática relação entre ela e os seus familiares, usando este cenário como o ponto de partida para que possamos entender os seus dilemas mais íntimos. Embora opte por não verbalizar os sentimentos de Manana, o argumento é cuidadoso ao expor a sua solidão, a sua falta de voz e a sua inércia dentro desta disfuncional estrutura familiar. Num 'mise en scene' ágil e sofisticadamente irônico, os diretores permitem que o público compreenda os motivos por trás de tamanha ruptura, transformando o envolvente primeiro ato numa espécie mais densa (e georgiana) de A Grande Família. Sem querer revelar muito, da relação entre ela e a sua mãe, a impositiva Lamara (Berta Khapava), nascem os momentos mais engraçados do longa, muito em função da maneira retrógrada com que a dramática matriarca enxergava a decisão da sua filha.


Impecável ao introduzir os conflitos desta mãe em busca de independência, My Happy Family é igualmente habilidoso ao acompanhar a jornada de redescoberta de Manana. Ao se distanciar da sua sufocante rotina, ela passa a reencontrar a sua identidade, a se renovar enquanto mulher, uma transformação sutil brilhantemente traduzida por Ia Shugliashvili. Numa criativa solução visual, inclusive, Nana e Simon substituem os caóticos planos sequências do primeiro ato por enquadramentos mais amplos e estáticos, capturando as mudanças da protagonista com suavidade e beleza. Nas entrelinhas, porém, os realizadores não se contentam em se concentrar somente no silencioso grito de liberdade de Manana. Ao longo do intenso segundo ato, a dupla amplia o escopo da trama ao, a partir da situação dela, refletir sobre a realidade feminina dentro de um cenário conservador. Com uma desconfortável naturalidade, o argumento evidencia os tabus enraizados na sociedade georgiana, expondo não só o paternalismo masculino, como também o conservador discurso feminino. A decisão de Manana gera ruidosas discussões, culminando em diálogos retrógrados, mas completamente francos. Além disso, é interessante ver o esmero de Nana e Simon ao pintar uma espécie de círculo vicioso, ao mostrar a precocidade dos mais jovens, os "erros" sendo repetido, um olhar crítico sobre uma parcela da sociedade da Geórgia. Na transição para o último ato, porém, a introspecção da protagonista se torna cansativa, principalmente diante da reviravolta matrimonial proposta pelo roteiro. Embora renda duas das melhores sequências do longa, vide a contundente última cena, a reação da personagem a este fato novo é tratada com certa redundância, travando o andamento da trama durante parte do último ato.


Nada que reduza o peso e a relevância de My Happy Family\Minha Família Feliz, um drama reflexivo que, guardada as devidas perspectivas culturais, se insurge contra os retrógrados padrões envolvendo a idealização da felicidade matrimonial. Com universalidade e inventivas soluções narrativas, Nana Ekvtimishvili e Simon Groß conseguem também pintar um revelador relato sobre o estilo de vida na sociedade georgiana, encontrando na Netflix o holofote necessário para propor uma importante discussão em torno de conflitos genuinamente femininos.

5 comentários:

Unknown disse...

Esse filme é belo,mas não qualquer beleza,é uma beleza que nos angustia. Após o filme me senti estranhamente tocada.

Unknown disse...

Destaque a parte musical do filme, notadamente na festa de encontro dos colegas.

thicarvalho disse...

Sem dúvidas Simone. Durante o filme, inclusive, pensei justamente que o filme deveria funcionar ainda melhor junto as mulheres. Bem lembrado Andre. Essa cena, em especial, é muito interessante. Valeu pela visita.

N/A disse...

Gostei! Fora da caixinha de "roliudi". Parecia ate um filme brasileiro. A versão drama do "A grande família. Embora os personagens principais não tenham nada a ver com Lineu e Nene. Interessante ver que em qualquer lugar do mundo os seres humanos são controladores, preguiçosos e que a família é o "peso" mais importante.

Voyager disse...

Vardade!