sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Extraordinário

Revigorante, adaptação encanta ao extrair o elemento humano da obra de R.J Palacio

Responsável pelo denso e intimista As Vantagens de Ser Invisível (2012), o diretor Stephen Chbosky comprova a sua sensibilidade para adaptações literárias no cativante Extraordinário. Consciente das suas responsabilidades diante de uma obra tão popular, o realizador norte-americano encanta ao extrair o elemento humano do texto de R.J Palacio, indo além das expectativas ao tratar o bullying sob um prisma mais amplo e delicado. Embora faça uso de alguns gatilhos emocionais bem típicos do gênero, o longa se esquiva das soluções fáceis ao se distanciar (mais do que o esperado) do adorável protagonista, ao valorizar os dilemas daqueles que o cercavam, preenchendo a trama com marcantes coadjuvantes e um sólido arco dramático recheado de momentos sinceramente comoventes. Na verdade, por mais que o pequeno Jacob Tremblay encha a tela de fofura com o seu corajoso Auggie, Chbosky é cuidadoso ao estabelecer o forte vínculo entre os personagens, reforçando o aspecto 'feel good' do livro ao defender com refinamento estético o valor da amizade, do companheirismo e do amor fraterno.



Com roteiro assinado pelo próprio Stephen Chbosky, ao lado de Steve Conrad e Jack Thorne, Extraordinário parece, inicialmente, seguir um caminho bem convencional dentro do gênero. Mesmo sem pesar a mão quando o assunto é o bullying, o longa não resiste a tentação no que diz respeito a utilização dos clichês do universo 'high-school'. Por mais que o foco central da trama seja bem específico, a ignorância de um grupo de crianças diante de um novo aluno com deformidade facial, o diretor trabalha com arquétipos bem reconhecíveis\genéricos, o que soa um pouco frustrante - confesso! - nos primeiros minutos de projeção. Na ânsia de personificar a figura do antagonista, por exemplo, o longa entra em contradição ao fazer um precipitado juízo de valor do mimado Julian (Bryce Gheisar, melhor do que o seu personagem), se antecipando aos fatos ao pinta-lo como o principal problema na rotina de Auggie (Jacob Tremblay). Além disso, Chbosky segue um caminho igualmente previsível ao moldar os conflitos entre os personagens, se escorando em soluções esquemáticas e gatilhos emocionais facilmente identificáveis. Por diversas vezes, inclusive, me peguei antecipando situações, antevendo problemas e percebendo a "malandragem" do roteiro na construção dos momentos mais emotivos\chorosos. Daqueles que você sabe que vai acontecer, se prepara para tal situação e, ainda assim, se pega derrubando algumas lágrimas diante do que foi mostrado em tela.


Não demora muito, porém, para percebemos que por trás de uma estrutura narrativa aparentemente genérica existe uma sensível história de amizade e companheirismo. Ao invés de se sustentar nos clichês prévios, Stephen Chbosky mostra astúcia ao os utilizar apenas como um ponto de partida, se aprofundando nos dilemas dos personagens com sensibilidade e uma forte carga humana. Numa solução inspirada, tal qual o livro, o realizador opta por dividir a trama em pequenos subcapítulos, se distanciando da tradicional estrutura de atos ao desvendar a situação do pequeno Auggie com intimidade e um realismo inocente. Ao contrário do que o próprio roteiro parecia sugerir, o bullying é explorado de maneira velada e sem um pingo de maniqueísmo. Os alunos não debocham ou desprezam o protagonista por pura maldade. Chbosky é sutil ao traduzir as motivações deles, ao revelar o impacto do preconceito e da imaturidade nos atos das crianças. Pintado inicialmente como um riquinho dissimulado, Julian, por exemplo, cresce em cena no momento em que percebemos os seus verdadeiros "medos". Sem querer revelar muito, o longa é perspicaz ao usar a questão da popularidade, criando (ai sim) uma rixa lógica (e propositalmente superficial) entre os dois personagens. O mesmo, aliás, acontece quando o assunto é o desenvolvimento dos dilemas de Auggie e da sua personalidade magnética. Através de inventivos movimentos de câmera e soluções criativas, o realizador encanta ao traduzir visualmente o estado de espírito do personagem, a sua solidão, os seus pensamento e os seus universais anseios. Fazendo um perspicaz uso do recurso da narração, Chbosky permite que o público crie uma sincera conexão com o protagonista, realçando o seu afiado senso de humor e a sua doçura em sequências iluminadas, edificantes e naturalmente revigorantes.


O grande trunfo de Extraordinário, entretanto, está no esmero do roteiro ao explorar os dilemas da família e dos amigos de Auggie. Sem um pingo de pressa, Stephen Chbosky amplia o escopo da trama ao se concentrar na relação entre os personagens e na influência do garoto nas figuras que o cercam. Mesmo sem nunca se desprender do pequeno protagonista, o argumento é inteligente ao mostrar o outro lado da situação, ao evidenciar que o desfigurado garotinho não era o único com problemas. Enquanto Auggie lutava para deixar a sua superprotegida bolha, somos apresentados aos dilemas da sua mãe, a zelosa Isabel (Julia Roberts), uma desenhista promissora que abriu mão da sua carreira para cuidar do fragilizado filho, da sua irmã, a compreensiva Via (Izabela Vidovic), uma jovem introspectiva que aprendeu a conviver com o distanciamento dos pais, do seu amigo, o bem intencionado Jack Will (Noah Jupe), um bolsista gentil preocupado com o seu "status" dentro do colégio, e da sua "meia-irmã", a mudada Miranda (Danielle Rose Russell), uma jovem as avessas com a sua própria identidade. Com extrema naturalidade, o realizador encontra as brechas necessárias para costurar estas comoventes subtramas ao arco central, preenchendo o longa com diálogos densos e conflitos (ainda) mais interessantes. Na verdade, sem nunca perder o senso de coesão e de espontaneidade, ponto para a esperta montagem, o roteiro ganha cada vez mais peso durante estas singelas mudanças de perspectivas, uma abordagem literária que só ajuda a solidificar o elo entre os personagens. Diante de coadjuvantes tão bem delineados, Chbosky esbanja suavidade ao defender também as lições de respeito propostas pela escritora R.J Palacio, se esquivando do teor melodramático ao investir em sequências honestamente sentimentais e enquadramentos plasticamente memoráveis. Como não citar, por exemplo, o íntimo abraço envolvendo avó (Sônia Braga numa marcante participação especial) e neta em Cone Island, ou então o terno encontro entre amigos à beira de um lago após um traumático episódio.


Outro ponto que agrada, e muito, é a sutileza da Stephen Chbosky na condução dos atores mirins. Com um elenco talentoso em mãos, o realizador consegue capturar a inocência por trás do olhar infantil, valorizando a expressividade dos pequenos tanto nos momentos mais cativantes, quanto nas sequências mais densas. Após brilhar intensamente no extraordinário O Quarto de Jack, Jacob Tremblay não encontra dificuldades para interiorizar as oscilações sentimentais, o otimismo e a inteligência do pequeno Auggie. Mesmo limitado pela verossímil prótese, o talentoso guri encanta ao torna-lo uma criança comum, um garoto que, apesar do bullying, só queria rir, se divertir e fazer novos amigos. No mesmo nível do seu colega de set, Noah Jupe rouba a cena na pele do afetuoso Jack Will.  Com um olhar curioso e uma expansividade natural, o jovem ator impressiona ao capturar o desconforto do seu personagem diante de uma situação especial, protagonizando alguns dos momentos mais verdadeiramente tristes do longa. Sem querer revelar muito, a sequência em que ele, sem dizer uma só palavra, finalmente enxerga o seu grande erro é de cortar o coração, um take singular capturado com sensibilidade pelas lentes de Chbosky. Por falar em delicadeza, Izabela Vidovic mostra maturidade de gente grande ao entregar a humana Via. Na persona mais complexa do filme, ela convence ao reproduzir a frustração silenciosa da irmã mais velha, um figura altruísta que prefere se calar a causar novos obstáculos para a sua família. Por mais que o roteiro subaproveite parte do seu arco, vide a nada sutil troca de assunto num momento chave da personagem, Vidovic emociona ao capturar o misto de fraternidade e cumplicidade de Via. Já entre os experientes, enquanto Julia Roberts absorve com intensidade o protetivo senso de maternidade da sua Isabel, Owen Wilson se torna uma espécie alívio cômico de luxo na pele do pai descolado e camarada.


Contando ainda com o emblemático retorno de Mandy Patinkin (A Princesa Prometida), um ator talentoso (e genioso) que, em apenas uma grande cena, emociona ao expor os dilemas de um professor "atrofiado" pela influência paterna, Extraordinário se desvencilha das soluções mais convencionais ao se encantar pela natureza dos seus personagens e pela a igualitária mensagem da obra original. Embora peque pelo excesso em alguns poucos momentos, vide o açucarado desfecho, Stephen Chboski encontra um bem-vindo meio termo entre a inocência e a realidade, buscando na jornada do carismático Auggie os ingredientes necessários para revelar a face mais incoerente e enraizada do bullying. O resultado é um filme tocante, reconfortante, mas consciente da sua importância social.

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