terça-feira, 21 de março de 2017

A Bela e a Fera

Uma passagem para a nossa infância

Um dos pilares da retomada da Walt Disney Animation na década de 1990, A Bela e a Fera (1991) está entre as mais icônicas produções da história do gênero. Responsável por revitalizar os até então esgotados conto de fadas, a animação dirigida por Gary Trousdale e Kirk Wise conquistou uma geração de fãs com seus fascinantes números musicais, os seus carismáticos personagens e um requinte visual que ainda hoje é difícil de traduzir em palavras. Dito isso, confesso ter sentido um misto de emoções no momento em que a Disney anunciou a refilmagem de A Bela e a Fera. Enquanto o meu lado infantil se empolgou com a possibilidade de revisitar este fantástico mundo, o meu lado experiente ficou em dúvida sobre a qualidade da produção. Por mais que o estúdio tenha acertado nas adaptações de Malévola (2014), Cinderela (2015) e Mogli: O Menino Lobo (2016), o temor era justificável, afinal de contas atualizar uma animação tão memorável parecia ser uma missão quase impossível. Felizmente, o meu lado criança saiu radiante da sala de cinema. Embora não tenha o peso e o ineditismo do clássico noventista, a nova versão de A Bela e a Fera encanta ao resgatar os elementos mais marcantes da obra original. Sob a batuta reverencial de Bill Condon (Dreamgirls), o longa extrair o sentimento por trás das preocupações técnicas, aliando o visual à narrativa ao dar uma nova vida a alguns dos momentos mais singelos da animação. Além disso, o diretor esbanja delicadeza ao explorar a faceta mais humana dos seus personagens, transformando a sincera conexão entre eles num dos diferenciais desta refilmagem. Um predicado realçado pelo carismático elenco, que, em perfeita sintonia, atesta a realização desta releitura em 'live action'.



Seguindo a linha Cinderela (2015), o novo A Bela e a Fera presta uma merecida homenagem ao longa original. Num trabalho tecnicamente exuberante, Bill Condon brilha ao resgatar a aura mágica da animação, nos brindando com engenhosos números musicais, com cenários habitáveis e com estilosos personagens digitais. Fiel aos traços da animação, ele equilibra CGI e soluções práticas ao traduzir não só a imponência e o aspecto mais sombrio do castelo da Fera, como também a aparência arcaica do colorido vilarejo de Bela, criando uma ambientação reconhecível aos olhos dos fãs. As cenas na vila, em especial, são naturalmente charmosas, muito em função da beleza do expressivo set e da vibrante fotografia diurna de Tobias A. Schliessler (O Grande Herói). Somado a isso, Condon é sagaz ao reproduzir também os movimentos de câmera, os enquadramentos e a palheta de cores de alguns dos momentos mais marcantes, criando um paralelo realmente perceptível com o clássico de 1991. A tão esperada sequência do baile, por exemplo, consegue um efeito novamente fluído e arrepiante, assim como o empolgante musical sobre o convencido Gastão e a lúdica apresentação do candelabro Lumière. Nesta última, inclusive, é possível perceber uma série de referência à outros musicais, entre eles Cantando na Chuva e Moulin Rouge. Num todo, aliás, as cenas dançantes são vigorosas e bem coreografadas, comprovando o virtuosismo do realizador ao capturar a mistura de cores e movimentos em takes amplos recheados de bailarinos.


As novidades estéticas, porém, são mais perceptíveis na composição das vestimentas e do visual de parte dos personagens. Numa solução inventiva, Bill Condon acerta ao utilizar os exagerados figurinos de época francês, que, explorados no seu viés mais cartunesco, adicionam um ar cativante ao longa. Contando com o interessante trabalho da equipe de animação, o diretor é igualmente criativo ao atualizar o visual dos hóspedes do castelo, conseguindo torna-los mais realísticos sem abdicar do carisma de cada um deles. Por mais que as suas expressões não sejam tão afetuosas, os objetos ganham uma aparência mais concreta, detalhada e condizente com a proposta 'live action'. Ou seja, embora eles falem e tenham uma personalidade própria, fica claro que estamos diante de um candelabro de ouro, de um relógio barroco ou de um bule de porcelana. Quando o assunto é a imponente Fera, porém, o trabalho não atinge o mesmo padrão de qualidade. No que diz respeito a expressividade, Condon faz um excelente trabalho, criando um personagem de aparência feroz, raivosa, mas com um olhar genuinamente humano. Por outro lado, a textura peluda do protagonista soa artificial, assim como a sua movimentação labial, pequenos detalhes que podem ser percebidos nos planos mais fechados. Uma derrapada que, diga-se de passagem, se repete na cena envolvendo o ataque dos lobos brancos, um momento tenso que perde parte da sua força devido a falta de peso dos animais. Num todo, porém, as sequências de ação são criativas e bem orquestradas, vide o lúdico embate final entre os destemidos objetos e os irritados invasores.


Visualmente impactante, o remake não se faz de rogado ao replicar a estrutura narrativa do clássico de 1991. Sob um ponto de vista macro, o argumento assinado por Stephen Chbosky e Evan Spiliotopoulos segue basicamente a mesma trama da animação ao narrar as desventuras de uma jovem (Emma Watson) presa um retrógrado vilarejo. Com o avançar da película, no entanto, os roteiristas jogam uma luz sobre temas pouco explorados no original, se debruçando com mais afinco sobre o passado dos "deslocados" protagonistas. Por mais que as questões levantadas sejam abordadas com brevidade, é interessante ver o zelo de Bill Condon ao desvendar os motivos por trás do comportamento arredio da Fera ou do isolamento da Bela. Na verdade, o realizador é preciso ao realçar as nuances mais íntimas dos dois, ao enfatizar as semelhanças entre eles e ao investigar as suas respectivas personalidades, tornando o crescente romance mais harmonioso aos olhos do público. Geralmente mal aproveitados, os flashbacks, aqui, são utilizados com propriedade, culminando numa contundente cena de abertura e num número musical totalmente coerente com o desenrolar da história.


Outro ponto que agrada, e muito, é o esmero de Bill Condon ao dar relevância aos carismáticos servos do castelo, entre eles o corajoso Lumiere, o engraçadíssimo Horloge, a bondosa Mrs. Potts e o peralta Zip. Além de estreitar a cativante relação entre eles, o realizador permite que cada um dos objetos ganhe um merecido espaço na trama, se esquivando por vezes do clima romântico ao valorizar o misto de drama e esperança dos amaldiçoados criados. Sem querer revelar muito, a devoção deles ao "seu príncipe" é comovente e se torna um elemento decisivo para a construção desta encantadora história de amor. Somado a isso, Condon é impecável ao adicionar uma faceta mais mundana aos personagens, principalmente quando o assunto é o malicioso Gastão, o carente LeFou e a imatura Fera. Antes retilíneo, o trio ganha um desenvolvimento mais mais humano e sentimentos como o ciúme, a raiva, o egocentrismo e o altruísmo. Da interação entre os antagonistas, aliás, nascem os momentos mais originais da película, um arco ardiloso potencializado pela afiada veia cômica de Condon. Por falar no humor, as bem sucedidas gags são utilizadas com desenvoltura ao longo da refilmagem e rendem algumas inesperadas gargalhadas.


É no talentoso elenco, entretanto, que reside a alma de A Bela e a Fera. Com nomes do primeiro escalão de Hollywood em mãos, Bill Condon mostra sensibilidade ao extrair o sentimento presente nesta história de amor, resgatando a pureza presente no clássico dentro de um contexto mais real. Uma das atrizes mais engajadas da nova geração, Emma Watson se tornou a escolha perfeita para interpretar a instruída Bela. Com a astúcia necessária para encarar esta popular princesa Disney, a estrela da saga Harry Potter esbanja carisma ao viver uma jovem solitária e independente, nos fazendo enxergar a sua crescente afinidade com a irritadiça Fera. Responsável por dar voz ao outro lado desta relação, Dan Stevens injeta humanidade ao seu personagem, enfatizando as conflitantes emoções do monstruoso príncipe ao expor a sua faceta mais deprimida e incompreendida. Quem pagou para ver o casal, no entanto, deve se surpreender com as excepcionais atuações da dupla Luke Evans e Josh Gad. Na pele do convencido Gastão, o primeiro cria um antagonista instável, egocêntrico e vaidoso, uma figura capaz de flutuar entre o odioso e o engraçado com enorme categoria. Já o segundo rouba a cena como o afetado LeFou. Muito mais do que um mero fiel escudeiro, o gordinho ganha uma roupagem mais atual, um tipo fiel e apaixonado que se torna o elo mais multidimensional da trama. Embora as inocentes insinuações sexuais entre os antagonistas apontem para o humor, Condon é inteligente ao explorar os limites morais do baixinho, o transformando num dos personagens mais inventivos do remake. Além deles, enquanto Kevin Kline (Maurice) exibe a sua reconhecida delicadeza ao encorpar a afetuosa relação entre pai e filha, os dubladores Ewan McGregor (Lumiére), Ian McKellen (Horlog), Stanley Tucci (Maestro) e Emma Thompson (Mrs. Potts) enchem a tela de personalidade como os encantadores pequenos criados da Fera.


No embalo da magnífica trilha sonora de Alan Menken, o homem por trás das canções originais da animação, A Bela e a Fera é uma refilmagem com coração, uma obra nostálgica capaz de reavivar as nossas memórias mais infantis. Apesar da enorme reverência ao clássico de 1991, Bill Condon contorna os pequenos obstáculos ao construir um musical humano, denso e revigorante, um justificado retorno a uma das mais apaixonantes histórias dos estúdios Disney.

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