terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Estrelas Além do Tempo

Como esta história ficou tanto tempo escondida? 

Enérgico e inspirador, Estrelas Além do Tempo fascina ao revelar os inestimáveis feitos de um trio de mulheres à frente do seu tempo. Cuidadoso ao expor o clima de segregação racial nos EUA na década de 1960, o longa dirigido por Theodore Melfi (Um Santo Vizinho) se esquiva dos melodramas fáceis ao acompanhar a obstinada ascensão de três matemáticas negras dentro da NASA no auge da corrida espacial norte-americana. Com personagens multidimensionais e um argumento bem resolvido em mãos, o realizador desbrava com afinco os obstáculos superados pelas especialistas, indo além das expectativas ao tratar o preconceito dentro de um contexto mais atual e velado. O resultado é uma película dona de uma luz própria. Uma obra moderna e revigorante que se orgulha em jogar uma merecida luz sobre uma poderosa história real.



Inspirado na biografia escrita por Margot Lee Shetterly, o argumento assinado pelo próprio Theodore Melfi, ao lado de Allison Schroeder, não se faz de rogado ao seguir uma cartilha básica, mas bem azeitada. Didático ao introduzir o contexto histórico, que surge, na maioria das vezes, em pequenos vídeos sobre a "rixa" espacial entre americanos e soviéticos, o roteiro é bem mais inspirado quando o assunto são os conflitos raciais em si. Com propriedade e poder de síntese, o longa foge do lugar comum ao traduzir o impacto da segregação na rotina das matemáticas, esbanjando naturalidade ao revelar as "normas" impostas pelos brancos e a maneira com que elas lidavam com isso. Por mais que a desoladora realidade da época se mostre revoltante nos dias de hoje, o realizador faz questão expor os fatos como parte de uma rotina, uma opção que se torna decisiva dentro da proposta mais humana defendia pela premissa. Além disso, Melfi é habilidoso ao trazer para o centro da história temas como a luta pelos direitos raciais, os fantasmas em torno da "ameaça comunista" e a desorganização dentro da própria NASA, ingredientes que, nas entrelinhas, só adicionam mais substância a este incrível relato. 


Na trama, somos apresentados a Katherine G. Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), três mulheres modernas e independentes que trabalhavam para a NASA. Limitadas pela política racial imposta pela organização no início da década de 1960, elas cediam o seu conhecimento matemático para cargos menos importantes, trabalhos menores que subaproveitavam um vasto potencial. Tudo muda, no entanto, quando o diretor Al Harrison (Kevin Costner) se vê em apuros com o projeto envolvendo a primeira viagem de um homem ao espaço. Sem ter a quem recorrer, ele resolve convocar Katherine para a sua equipe, acreditando que a especialista em cálculos poderia encontrar as respostas necessárias solucionar este grande problema. Inicialmente acuada dentro de um ambiente majoritariamente masculino, ela não demora muito para revelar a sua importância, se tornando um exemplo natural para as suas duas amigas. Movidas pelo êxito da matemática, enquanto Dorothy decide confrontar a sua supervisora (Kirsten Dunst) na busca por uma merecida efetivação, Mary resolve enfrentar o "sistema" e se candidatar a uma concorrida vaga para engenheiro da NASA. 


Com uma história recheada de momentos emblemáticos, Theodore Melfi é inicialmente primoroso ao introduzir estas figuras tão especiais. Em apenas uma simbólica sequência, o realizador norte-americano brilha ao nos fazer enxergar tanto a independência do trio dentro de uma realidade pouco amistosa para mulheres negras, quanto as suas marcantes personalidades, permitindo que o público crie uma empatia quase que instantânea por elas. Apesar do foco da trama estar na decisiva participação de Katheryne no Projeto Mercury, o realizador é igualmente habilidoso ao acompanhar a ascensão de Mary e Dorothy, dando uma abordagem particular a cada um destes arcos. Ainda que o trio passe por problemas semelhantes, entre eles o desdém dos superiores, o preconceito racial e a recorrente desconfiança, é interessante ver a sensibilidade do roteiro ao desvendar a maneira pessoal com que cada uma delas superou os obstáculos na busca pela afirmação dentro da NASA. É aqui, aliás, que reside o grande diferencial de Estrelas Além do Tempo. Embora o contexto segregador marque uma forte presença na trama, o longa potencializa a sua mensagem quando fala sobre o empoderamento feminino, sobre a luta destas mulheres para se estabelecer dentro de um ambiente essencialmente masculino. Respeitando as características mais básicas da personagem, Melfi volta ao passado para dialogar com uma discussão ainda hoje presente na nossa sociedade, indo além do tom reverencial ao realçar a humanidade e a persistência por trás dos feitos de Katheryne, Dorothy e Mary. 


Magnífico ao trazer para o centro da trama a questão da igualdade de gênero, Theodore Melfi esbanja categoria ao refletir também sobre os conflitos raciais na década de 1960. Por mais que o argumento pese a mão em uma ou duas cenas, a sequência em que Katheryne explode diante do seu superior, por exemplo, destoa do restante da película, o diretor mostra inspiração ao encarar o preconceito em sua interpretação mais literal. Fazendo um excelente uso dos personagens de apoio, entre eles a supervisora Vivian Mitchell (Kirsten Dunst) e o chefe de operações Paul Stafford (Jim Parsons), Melfi escancara a ignorância por trás de um sentimento tão irracional. Esqueça as ofensas gratuitas e os personagens unidimensionais. Com enquadramentos amplos e reveladores planos conjuntos, o realizador é cuidadoso ao traduzir não só a velada sensação de desconforto ocasionada pela presença de Katherine neste ambiente majoritariamente branco e masculino, como também a surpresa de todos diante das primeiras demonstrações do seu vasto intelecto, realçando a crescente integração com naturalidade e inteligência. Embora o argumento se concentre na convencional parceria entre a tímida matemática e o compreensivo Al Harrison, é da silenciosa relação entre ela e o competitivo Paul que nasce o arco mais desafiador do longa. Na verdade, ele é o único que parece enxerga-la como uma ameaça profissional, com igualdade, culminando numa subtrama envolvente arrematada com maestria por Melfi. Num todo, aliás, após um início soberbo e um segundo ato desequilibrado, o longa recupera o seu vigor dentro do comovente terço final e entrega um clímax à altura dos feitos das biografadas. 


Por falar nelas, conduzidas com elegância e energia, o talentoso trio de protagonistas reluz em cena ao capturar a essência vanguardista das matemáticas. Apesar de estarem inseridas num mesmo cenário, é incrível como elas absorvem as características mais básicas das suas respectivas personagens, comprovando que existem diversas formas de se lidar com um mesmo problema. Dona de um carisma natural, Taraji P. Henson cativa ao traduzir o misto de genialidade, timidez e submissão da sua Katherine. Em uma performance crescente, a atriz convence ao encarar com naturalidade a segregação racial dentro da NASA, entregando uma personagem comedida e extremamente real. Além disso, Henson é graciosa ao interiorizar os maneirismos da especialista em cálculos, pontuando algumas das sequências como um charme especial. A maneira com que ela ajeita os óculos diante da sensação de alívio, por exemplo, é explorada com perspicácia por Theodore Melfi, se tornando uma espécie de respiro para as sequências mais desconfortáveis. No mesmo nível da sua parceira de set, a magnética Octavia Spencer não encontra dificuldades para dar vida a determinada Dorothy. Expressiva e bem humorada, a atriz é a voz da experiência, uma mulher culta e madura que sabe a hora certa de encarar os seus obstáculos. Sem querer revelar muito, a silenciosa cena em que a supervisora percebe ter alcançado os seus objetivos é emblemática, um momento de rara inspiração. Quem realmente rouba a cena, porém, é a cantora Janelle Monáe. Vigorosa, a agora promissora atriz cria uma Mary moderna e independente, uma figura capaz de confrontar o "sistema" com esperteza e cabeça erguida. Ainda sobre o elenco, enquanto Kevin Costner cumpre a sua função integradora com forte presença cênica, Jim Parsons, Kirsten Dunst e Glen Powell brilham ao mostrar as inúmeras faces deste ambiente segregador. 


Por mais que a abordagem ensolarada\pop possa soar ingênua aos olhos do espectador mais inflexível, Estrelas Além do Tempo encanta ao reverenciar os incríveis feitos de três visionárias mulheres sob um prisma crítico e inegavelmente atual. Numa opção sagaz, Theodore Melfi eleva o nível da película ao aproxima-la de um contexto mais moderno, encontrando na trajetória de Katheryne, Mary e Dorothy os ingredientes necessários para levantar uma ainda hoje relevante bandeira em prol da igualdade de gênero. E isso, diga-se de passagem, numa obra recheada de predicados técnicos. Impulsionado pelo primoroso trabalho da equipe de direção de arte, impecável ao reproduzir os bastidores da primeira grande missão espacial norte-americana, o realizador cumpre a sua missão ao jogar uma merecida luz sobre o trabalho destas "figuras escondidas", realçando o espírito desbravador por trás desta magnífica história real. 

Um comentário:

Unknown disse...

Eu recomendo porque é um filme sem medo de tratar personagens desconhecidas como heroínas da vida comum, do trabalho, da luta por igualdade. Adoro ler livros, cada um é diferente na narrativa e nos personagens, é bom que cada vez mais diretores e atores se aventurem a realizar filmes baseados em livros. Também adorei 7 Minutos Depois da Meia Noite é um dos melhores filmes baseados em livros, porque tem toda a essência do livro mais sem dúvida teve uma grande equipe de produção. É muito inspiradora, realmente a recomendo.