sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Capitão Fantástico

Uma experiência excêntrica e revigorante

Ensolarado e reconfortante, Capitão Fantástico surge como um sopro de esperança num momento turbulento. Conduzido com extrema delicadeza pelo versátil Matt Ross (Silicon Valey), o longa fascina ao acompanhar a incrível jornada de uma família pouco ortodoxa. A partir de um ponto de vista extremo e autoral, o realizador norte-americano expõe a maneira vazia com que estamos conduzindo as nossas vidas, se insurgindo, dentre outras coisas, contra o materialismo, o consumismo, a desigualdade e a ignorância e a degradante rotina urbana. Em sua essência, porém, Capitão Fantástico traz ingredientes bem mais humanos. Saindo em defesa da liberdade de pensamento e de valores que nem a mais cara instituição educacional é capaz de ensinar, Ross nos brinda com uma genuína ode aos vínculos familiares, ao amor fraternal. Uma mensagem única e emocionante que, impulsionada pela soberba atuação de Viggo Mortensen e do rejuvenescido elenco, nos faz refletir sobre os perigos em torno do nosso desgastante estilo de vida. 



Assinado pelo próprio Matt Ross, o roteiro é inicialmente ágil ao apresentar os marcantes personagens. Ao longo do imersivo primeiro ato, o realizador esbanja categoria ao estabelecer não só a  organizada rotina "selvagem" e a filosofia desta naturista família, como também a inusitada dinâmica entre eles. Ainda que num primeiro momento este alternativo cenário soe desconfortável aos olhos do público, Ross testa as nossas expectativas ao realçar o inesperado impacto desta criação na formação dos jovens, indo além da excentricidade ao destacar que por trás das noções de sobrevivência existia a preocupação com a educação, a cultura e o conhecimento. Na trama, asfixiado pelo cenário urbano, o idealista Ben (Mortensen) resolveu se isolar do mundo e erguer a sua família cercado apenas pela natureza. Ao lado dos seus seis cativantes filhos, o inteligente Bo (George MacKay), a curiosa Kielyr (Samantha Isler), a precoce Vespyr (Annalise Basso), o explosivo Rellian (Nicholas Hamilton), a anárquica Zaja (Shree Crooks) e o simpático Nai (Charlie Shotwell), ele construiu uma espécie de oásis no meio do nada, um lugar funcional que oferecia tudo o que eles precisavam para viver longe das grandes metrópoles. Adaptados a esta realidade, os jovens são pego de surpresa com a notícia da morte da sua mãe, a instável Leslie (Trin Miller). Abalados com a notícia, Ben e os garotos decidem prestar uma última homenagem a ela, mesmo sabendo que este retorno à cidade poderia representar uma ameaça ao seu desprendido estilo de vida.


Com uma premissa naturalmente envolvente em mãos, Matt Ross faz um excelente uso do recurso do 'road movie' ao expor a cumplicidade, os conflitos e os valores presentes nesta exótica família. Através de diálogos francos e sequências intimistas, o realizador sai em defesa da liberdade de pensamento, da integridade e do poder da cultura, elementos explorados com rara espontaneidade ao longo da película. Sem nunca soar panfletário ou intelectualizado, Ben se torna um mentor instruído e objetivo, um homem capaz de falar sobre opressão política, morte e vida sexual com surpreendente naturalidade. A cena em que ele tenta esclarecer as dúvidas biológicas da pequena Zaja, por exemplo, é impagável, assim como a sequência anterior envolvendo uma repentina análise do clássico Lolita. Da vocação instruída\contestadora da família Cash, inclusive, nascem algumas das mais interessantes (ops!) críticas defendidas pelo argumento, a maioria delas envolvendo o consumismo desenfreado, o materialismo e a falta de respeito às diferenças. Melhor ainda, porém, é a maneira perspicaz com que Ross utiliza a alternativa criação dos garotos como uma espécie de instrumento comparativo, principalmente quando volta a sua mira para o nosso deteriorado modo de vida urbano. Sob o ingênuo ponto de vista dos protagonistas, o longa questiona a degradação física, a ignorância, a hipocrisia e a superproteção dos mais jovens, temas explorados com extrema ironia ao longo da película.


A alma de Capitão Fantástico, porém, reside na sincera conexão entre os membros desta exótica família. Com sutileza e intimismo, Matt Ross mostra profundidade ao explorar não só o lado afetuoso desta relação, como também os crescentes conflitos em torno deste repentino contato com a rotina urbana. Impulsionado pela acolhedora e colorida fotografia de Stéphane Fontaine (Ferrugem e Osso), o realizador é habilidoso ao explorar os contrastes por trás deste choque de realidade, expondo o melhor e o pior deste isolado estilo de vida. Se num primeiro momento a impressão quanto ao processo de formação dos jovens é extremamente positiva, à medida que a trama avança o argumento faz questão de investigar o radicalismo de Ben, a hipocrisia dele ao tentar impor a sua "libertadora filosofia" e a sua incapacidade de enxergar o despreparo dos filhos para a vida em sociedade. Sem nunca recorrer ao sentimentalismo barato, Ross emociona ao revelar o impacto destas "descobertas" no 'status quo' da família, um tema por si só delicado, mas que aqui ganha contornos ainda mais densos devido ao peso do luto. Numa opção inteligente, o argumento opta por manter os segredos acerca da figura materna, uma personagem que, mesmo "ausente", se torna uma peça decisiva dentro do revigorante último ato. Antes disso, porém, Matt Ross peca ao trabalhar os dilemas mais pessoais do protagonista. Embora não reduza a força do extraordinário clímax, a transformação de Ben é desenvolvida com inexplicável pressa e culmina num conveniente 'plot twist'.


Em contrapartida, mesmo nestes momentos mais acelerados, o carismático elenco traduz com rara inspiração o turbilhão de emoções enfrentado pelos personagens. Reconhecido pela sua força em cena, Viggo Mortensen "lidera" a garotada numa atuação complexa e cheia de vida. Apesar da evidente excentricidade em torno deste modo de vida naturista, o astro nova-iorquino nos faz crer tanto na aptidão física e intelectual do bem intencionado Ben, quanto na sua vulnerabilidade diante da iminente insurgência dos filhos. Uma atuação digna dos melhores prêmios. No mesmo nível do seu veterano parceiro de cena, o promissor George Mackay (Orgulho e Esperança) esbanja versatilidade com o querido Bo, um tipo destemido e atrapalhado que não se envergonha de exprimir as suas fragilidades. Sem querer revelar muito, a cena em que ele se vê pela primeira vez encantado pela figura de uma garota é sensacional, um dos muitos momentos genuinamente engraçados do filme. Quem também ganha um merecido destaque é o intenso Nicholas Hamilton. À frente do elemento mais sensível desta família, o jovem ator entrega uma performance de gente grande ao absorver o temperamento explosivo do seu Rellian. Os dois grandes ladrões de cena do longa, no entanto, são os adoráveis Charlie Shotwell e Shree Crooks. Curiosos e expansivos, a dupla enche a tela de fofura com os seus respectivos personagens, o "maoísta" Nai e a "anarquista" Zaja, e protagonizam alguns dos momentos mais divertidos do filme. Ainda entre os destaques, enquanto o veterano Frank Langela adiciona um pouco mais de racionalismo e contundência na pele do devastado avô materno, a engraçada Kathryn Hahn flerta com elementos mais densos ao interpretar a atordoada irmã de Ben.


Com personagens singulares, uma premissa autoral e conflitos essencialmente humanos, Capitão Fantástico desponta como um oásis cinematográfico, uma espécie de fábula moderna incrementada pela exuberante direção de arte, pelos radiantes figurinos e pela revigorante trilha sonora de Alex Somers. Embora se sustente numa estrutura narrativa bem familiar, Matt Ross foge do lugar comum ao investir numa abordagem peculiar, por vezes crítica, mas que em nenhum momento deixa de se encantar pela fascinante jornada desta alternativa e nada disfuncional família americana. Em suma, um pequeno grande filme capaz de falar sobre política, filosofia, cultura, coletividade, ignorância e amor fraterno sem nunca perder o bom humor, a emoção e a capacidade de nos surpreender. 

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