quarta-feira, 29 de junho de 2016

Mais Forte que o Mundo

Uma cinebiografia de respeito

Dono de uma riquíssima história de vida, o astro do MMA brasileiro José Aldo tem a sua intimidade revelada no triunfante Mais Forte que o Mundo. Num relato vibrante e nada condescendente, o diretor Afonso Poyart (2 Coelhos) esbanja o seu reconhecido virtuosismo estético ao expor alguns dos episódios mais marcantes na trajetória do lutador manauara, indo a fundo nos seus dolorosos conflitos pessoais ao narrar a ascensão do homem por trás das conquistas. A partir de um impecável argumento, o realizador mostra inspiração ao investigar não só a explosiva personalidade do biografado, como também as barreiras profissionais enfrentadas pelo ex-campeão do UFC, encontrando na intensa performance de José Loreto o misto de raiva e obstinação necessários para construir esta poderosa história de superação. Em outras palavras, Mais Forte que o Mundo é uma cinebiografia de respeito. Uma película completa, profunda e tecnicamente primorosa.


Intenso e emotivo, o argumento assinado pelo próprio Afonso Poyart não se faz de rogado ao revelar o melhor e o pior em torno da jornada do lutador. Através de uma abordagem humana e nada unidimensional, o realizador é cuidadoso ao traduzir os dilemas familiares enfrentados por Aldo, permitindo que cada um dos personagens tenha participação ativa dentro da trama. Num primeiro momento, Poyart brilha ao expor com veemência o impacto da violência doméstica na construção da personalidade do manauara, principalmente na volátil relação entre o protagonista e o seu agressivo pai (Jackson Antunes), nos fazendo enxergar os motivos por trás dos rompantes de fúria de Aldo. Já num segundo momento, o diretor é habilidoso ao realçar as semelhanças comportamentais entre os dois, mostrando as falhas, os medos e a fragilidade emocional do campeão diante deste cenário hostil e do seu nebuloso futuro. Nesse sentido, aliás, é interessante ver como o argumento transforma a figura paterna numa espécie de fantasma para Aldo, um tipo capaz de incitar as mais contrastantes reações no lutador. Até porque, nas entrelinhas, podemos perceber também o afeto, o respeito e identificação mútua entre pai e filho, sentimentos que moldam este complexo relacionamento e ajudam a arquitetar o comovente clímax. Melhor ainda, porém, é a maneira perspicaz com que o longa desvenda as nuances emocionais e a personalidade do lutador. Numa inventiva solução narrativa, Poyart opta por dar um corpo ao "inimigo" mais íntimo de Aldo (Rômulo Neto, positivamente insano), escancarando alguns dos seus mais enraizados conflitos dentro de uma subtrama psicológica, provocadora e altamente tensa. Uma opção ambiciosa e altamente eficaz que dá ao diretor uma bem vinda liberdade criativa. 


Além disso, à medida que a história desembarca no Rio de Janeiro, Afonso Poyart esbanja versatilidade ao trabalhar também com gêneros como a comédia e o romance. Com uma série de carismáticos coadjuvantes em mãos, vide o hilário zelador da academia Nova União e o "chefe" do morro do Vidigal, Poyart arranca honestas risadas ao acompanhar o processo de adaptação do manauara na Cidade Maravilhosa. Através de um texto ágil e naturalmente engraçado, o realizador constrói uma série de bem encaixados alívios cômicos, a maioria deles envolvendo a relação do lutador com o amigo Marcos Loro (Rafinha Bastos, inesperadamente bem) e a própria inocência do protagonista. Nenhuma destas figuras, no entanto, funciona tão bem quanto a indomável Viviane (Cléo Pires). Dona de uma personalidade fortíssíma, a personagem rouba a cena a partir do segundo ato e não se contenta em ser somente um mero interesse amoroso. Ainda que o romance entre os dois seja sincero e repleto de química, Poyart a transforma numa espécie de nêmesis, a única capaz de encarar\domar o temperamento de José Aldo. Neste sentido, aliás, precisamos destacar também o arco envolvendo o técnico Dedé Pederneiras (Milhem Cortaz) e a sua relação quase paternal com o "pupilo" José Aldo. Uma parceria franca que vai bem além dos ensinamentos esportivos.


Com uma história extremamente rica em mãos, Afonso Poyart eleva o patamar da película ao utilizar o seu virtuosismo estético sempre em prol da narrativa. Impulsionado pelo precioso trabalho da equipe de direção de arte, impecável ao injetar um dose de sujeira e desordem cênica aos cenários, o realizador constrói um primeiro ato desconfortável aos olhos do público. Como se não bastassem as expressivas atuações, Poyart amplia a deterioração física e emocional dos personagens ao apostar em enquadramentos sufocantes, em cortes acelerados e em imagens nebulosas. Sem querer revelar muito, as explosões de raiva de Aldo são capturadas sob um prisma nervoso e intimista, incrementada pela enérgica montagem de Lucas Gonzaga e pela fotografia quente\vibrante de Carlos André Zalasik. Além disso, no melhor estilo filme de boxe, o diretor constrói uma série de empolgantes sequências de treinamento, realçando o esforço do lutador e os golpes utilizados dentro do universo das Artes Marciais Mistas. A cereja do bolo, no entanto, fica para as ágeis e bem coreografas cenas de ação. Assim como em 2 Coelhos (2012), Poyart faz um excelente uso do recurso da câmera lenta, utilizado em abundância não só nos realísticos combates, como também nos momentos mais dramáticos. A diferença é que aqui ele investe também em movimentos e ângulos mais ousados, tornando os combates absolutamente atraentes aos olhos do público ao mostrar o protagonista por variados pontos de vista. Vide a brutal luta no bar, uma das melhores e mais limpas sequências de ação deste ano de 2016, e a frenética perseguição pelas vielas da periferia manauara. 


A verdadeira força motora de Mais Forte que o Mundo, no entanto, reside no eclético elenco. Apesar do estranhamento inicial em torno da escalação do galã José Loreto, o jovem ator absorve com intensidade as nuances deste popular lutador. Ora explosivo, ora simpático, Loreto traduz com categoria os dilemas enfreados pelo protagonista, criando um Aldo humano e reprimido. No mesmo nível do seu parceiro, Cléo Pires esbanja energia ao dar corpo a vigorosa Viviane. Dona de um charme natural, a atriz cria uma figura independente e destemida, uma personagem apaixonante. Além da invejável química, os dois exibem uma espantosa entrega física, tornando críveis as expressivas sequências de ação. Já entre os experientes, Jackson Antunes se esquiva do tom unidimensional ao construir uma nociva figura paterna. Entre o sábio e odioso, o ator carrega na sua expressão o peso de uma vida miserável, criando uma complexa relação com o seu amado filho. Além disso, ele retrata como poucos o peso do alcoolismo, escancarando a degradação do José pai ao longo do incisivo primeiro ato. Assim como Antunes, aliás, Claudia Ohana mostra no olhar o sofrimento de Rocilene, uma mãe submissa abalada pelo comportamento hostil do seu marido. Por fim, reconhecido por sua veia cômica, Milhem Cortaz mostra uma faceta mais contida ao interpretar o técnico Dedé Pedeneiras. Como se não bastasse a semelhança física, o ator de Tropa de Elite mostra equilíbrio ao representar a voz da sensatez para o lutador em solo carioca.


Ainda que esbarre em alguns pequenos deslizes narrativos, a maioria deles envolvendo o ligeiro didatismo do clímax e o excesso de frases feitas, Mais Forte que o Mundo é um exercício estético e narrativo de primeira categoria. Sem a intenção de criar heróis ou vilões, Afonso Poyart se encanta pela história de vida de José Aldo, revelando com intimidade e contundência alguns dos episódios que ajudaram a moldar a personalidade deste popular lutador. Na verdade, mais do que uma cinebiografia esportiva, o realizador constrói um relato inspirador sobre um brasileiro comum, um homem falho e determinado que lutou contra os obstáculos impostos pela desigualdade social e as suas próprias fraquezas para alcançar o sonho da sua vida. Um entretenimento poderoso capaz de agradar não só aos fãs do universo do MMA, como àqueles que procuram pura e simplesmente uma película de qualidade.

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