terça-feira, 22 de março de 2016

Mundo Cão

Cão que morde não ladra

Um filme de gênero essencialmente brasileiro, Mundo Cão investe pesado no humor negro ao colocar em cheque a irracionalidade do ser-humano diante das hostilidades enfrentadas no dia a dia das grandes cidades. Impulsionado pelo instigante argumento, o diretor Marcos Jorge (do aclamado Estômago) esbanja acidez ao construir um suspense pulsante, um relato inteligente marcado por bem arquitetadas reviravoltas e por voláteis personagens. Mesmo com alguns pequenos problemas narrativos, a maioria deles refletidos no uso da deslocada trilha sonora e no flerte com os melodramas, o longa é perspicaz ao provocar a expectativa do público, investindo na imprevisibilidade ao acompanhar a jornada de vingança iniciada com o sacrifício de um estimado cão. E isso sem falar da absurda performance de Làzaro Ramos, que, num tipo sarcástico e naturalmente assustador, dá completo sentido a esta moderna e urbana sátira social. Uma obra que merece ter os seus segredos protegidos, portanto, ao longo do texto, não iremos nos aprofundar nos detalhes desta afiada trama.



Ao contrário do que o título poderia sugerir, o argumento assinado por Jorge, ao lado de Lusa Silvestre, é sagaz ao descaracterizar a irracionalidade por trás do comportamento canino. Numa bem vinda crítica envolvendo o sacrifício de animais abandonados, o realizador mostra consciência ao associar a violência aos humanos, e não aos cães, ressaltando que as suas atitudes nada mais são do que uma extensão do comportamento do dono. Neste caso o temido Nenê (Lázaro Ramos), um mafioso que utilizava os seus adestrados cachorros como um instrumento de medo, uma espécie de arma contra àqueles que se colocavam em seu caminho. Num destes acasos do destino, Nenê entra em rota de colisão com o integro Santana (Babu Santana), um pacato funcionário do Centro de Controle de Zoonoses em SP. Vivendo ao lado da sua esposa Dilza (Adriana Esteves) e dos filhos João (Vini Carvalho) e Isaura (Thainá Duarte), o humilde funcionário público vê a sua rotina mudar no momento em que é escalado para recolher um dos cães prediletos de Nenê e leva-lo para a instituição. Desesperado com o sumiço do seu animal, o criminoso fica furioso ao perceber que não chegou a tempo de impedir o sacrifício do seu Rottweiler. Em busca de vingança, Nenê volta a sua mira para o inocente Santana, dando início a uma tortuosa onda de ódio e violência.


Equilibrando o suspense, a comédia e o drama com rara categoria, Mundo Cão evidencia, numa escala de absurdos, os ecos de um ambiente urbano cada vez mais hostil. Amparado pelo cínico argumento, Marcos Jorge utiliza os cães como uma espécie de símbolo, o estopim para a crítica social envolvendo a irracionalidade humana e o impacto da violência na nossa sociedade. Mesmo que em tons mais carregados, o realizador questiona a inconsequência diante do frenético modo de vida urbano, mostrando os perigos por trás dos nossos mais raivosos atos. Sem querer revelar muito, o roteiro não é nada condescendente ao ressaltar o quão tênue pode ser a linha entre a caça e o caçador, abraçando o humor negro ao desvendar o círculo vicioso iniciado por Nenê. Melhor ainda, no entanto, é o próprio desenrolar do longa. Recheado de espertas reviravoltas, daquelas que se integram naturalmente à trama, o argumento é habilidoso ao brincar com a expectativa do público, permitindo que os personagens ganhem novas nuances sem passar por qualquer tipo de descaracterização. Além disso, apesar de trazer como pano de fundo a selvageria nas grandes cidades, Marcos Jorge surpreende ao abrir mão da banalização da violência. Na maioria das vezes, inclusive, o diretor prefere voltar o foco para o autor e não para o ato, numa opção que faz todo o sentido dentro da proposta crítica do suspense.
   

Por outro lado, o realizador peca pelo excesso em algumas das sequências mais intimistas, principalmente na relação entre Santana e os seus dois filhos. No ritmo da exagerada trilha de Maurício Tagliari, talvez o maior equívoco do longa, Marcos Jorge vacila ao traduzir as emoções da atormentada família, se rendendo a uma atmosfera melodramática que por pouco não reduz o impacto da película. Equívocos que, verdade seja dita, acabam amenizados pelo afiado elenco, a começar por Lázaro Ramos. No primeiro grande antagonista da sua carreira, o ator baiano rouba a cena ao encarnar a persona sádica de Nenê, criando um tipo assustador, irônico e curiosamente magnético. Reconhecido pelo grande público ao estrelar a cinebiografia do cantor Tim Maia, Babu Santana volta a desfilar o seu carisma ao interpretar o bem intencionado Santana. Reconhecido pela sua comicidade, o ator convence também nos momentos mais emotivos, contornando os excessos narrativos ao dar vida ao seu amedrontado personagem. Assim como Babu, Adriana Esteves mostra intensidade ao absorver o turbilhão de emoções enfrentado por Dilza. Responsável por protagonizar uma das melhores sequências do longa, a atriz esbanja categoria ao embaralhar os sentimentos do público diante de uma situação naturalmente devastadora. O grande trunfo da película, no entanto, reside na soberba atuação da novata Thainá Duarte. Numa performance irretocável, a jovem oferece os subsídios necessários para o sufocante último ato, colocando em cheque alguns dos mais enraizados clichês do gênero. 


Com um desfecho à altura das mais espirituosas produções do gênero, Mundo Cão se revela um suspense cínico, ágil e absolutamente imprevisível. Um longa que, mesmo com inegáveis deslizes estéticos e narrativos, os contorna ao investir num ácido tom crítico e em reviravoltas que por vezes beiram a genialidade. No entanto, em meio a escassez de bons representantes no cenário dos blockbusters nacionais, é uma pena que esta surpreendente película tenha o seu alcance limitado ao reduzido "circuito de arte", perdendo espaço para siticons genéricas, para preguiçosas comédias e para telenovelas em formato fílmico.

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